HISTÓRIAS DE GUERRA...E PAZ
Mais uma crônica da série "Memórias a Granel".
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Quando
criança eu era fogo na roupa, como dizia minha mãe. Era uma expressão para
definir quem era considerado uma pimentinha, gente que aprontava com todo
mundo. Confesso: eu era assim mesmo. E o pior é que eu influenciava meus primos
a serem também. Por isso a gente vivia sempre juntos – fora as horas em que eu
gostava de ficar sozinho, sozinho, sozinho. A aldeia nos proporcionava bastante
oportunidade para a gente aprontar.
Quando
eu ia para a escola na cidade eu bem que tentava me comportar, mas quase nunca
conseguia. Apesar dos desconfortos que passava por lá, eu me enturmava bem com
uma garotada que também era um tanto desaforada. Acho que era uma forma de me defender.
A gente aprontava umas com os garotos das outras ruas. Eram guerrinhas de
pedras, brincadeira pesada em que quase sempre alguém saia machucado. Nos
terrenos baldios do bairro onde eu morava, a gente se reunia e dividia os
territórios entre os grupos. Cada um se armava com pedras feitas de barro, mais
macias, mas igualmente letais se acertassem em cheio nos adversários. Na
sequência alguém dava um sinal e a guerra começava. Eram pedras voando de um
lado para o outro. Gritarias de ambos os lados, alguns choros ou gritos de
guerra soavam para cá e para lá. A “brincadeira” acabava quando todos
estivessem sem munição. Aí os grupos se reuniam para conferir os “mortos e
feridos” em combate. Muitas vezes levei pedradas na cabeça ou lancei outras nas
cabeças de meus “inimigos”. Era um jeito estranho de brincar.
Na
aldeia eu contava esses jogos para meus primos e irmãos e eles quase nunca
acreditavam que isso pudesse acontecer entre “gente civilizada”. Eu ria da
inocência deles, mas ficava explicando que a lógica daquele jogo era a mesma em
todos os lugares. Tudo não passava de uma maneira de marcar território. Assim
todos ficavam sabendo quem mandava em quê. Do alto dos meus 12 anos eu ensinava
para eles que sempre foi assim na história dos homens, sejam brancos ou não.
Tudo não passava de conquista de espaço. A guerra é uma forma de dominar, eu
dizia orgulhoso. Nosso povo é educado para ser guerreiro e dominar outros
povos, outras gentes. Todos nós, eu dizia, somos ensinados a vencer ainda que
para nós isso não importe muito.
No
final do dia, depois de tantas tentativas de explicação, meus parentes
continuavam sem entender o que eu estava falando, mas aquilo era uma espécie de
ensaio para mim. E também uma forma de decorar os conteúdos que aprendia na
escola. É que eu tentava fazer do que aprendia algo prático para minha vida e
só assim é que eu conseguia fazer isso.
Uma
tarde encontrei minha avó na beira do igarapé. Ela lavava sua roupa batendo-a
contra uma tábua que se estendia na beirada. Aí eu quis entender o porquê
daquele ritual. Ela simplesmente balançou a cabeça e disse sem pestanejar que
eu estava querendo explicação demais para as coisas que não eram para ser
explicadas. Fiquei encucado com aquelas palavras e disse isso a ela. Minha avó
parou o que estava fazendo e mandou que eu sentasse. – Tem coisas que não são
para ser entendidas, meu neto. A guerra, por exemplo, é algo incompreensível
para nós mulheres, mas algo normal para os homens. Os rapazes precisam brigar
entre si para provarem que são machos, fortes, robustos, valentes, corajosos,
honrados. A guerra não serve para dominar os outros, mas para provar a si
mesmos quem é o melhor. Numa guerra, todo mundo sai perdendo.
Eu
tive que fingir que entendi o que ela me disse. Não entendi nada. Mas fiquei com
aquelas palavras em minha cabeça porque sabia que um dia elas serviriam para
alguma coisa. Bem depois, quando já crescido e vivendo na cidade grande,
comecei a compreender as palavras de minha avó ao ver os adultos correndo e
brigando uns com os outros por uma vaga no mercado de trabalho. Tudo era pura
competição, briga, guerra, disputa. Todos querendo mostrar uns para os outros
quem era melhor para ocupar a tal vaga de emprego. Apesar de “civilizados” os
homens brancos tinham a mesma sede de domínio que aqueles que consideram
selvagens, seus antepassados históricos. E quando conseguiam conquistar algum
novo território, comemoravam se empanturrando de carne assada e bebidas
fermentadas. Essas eram as novas modalidades de guerras que aos poucos eu fui
percebendo ao longo de minha passagem pelo mundo do homem civilizado. Além
disso, vi os derrotados, os humilhados, os excluídos sendo explorados, os
“perdedores” vivendo na rua da miséria. E eu não havia nascido para ser
derrotado, pensava. Mas numa guerra, todo mundo sai perdendo, dizia minha vó
com toda razão. Depois disso não quis mais fazer guerra. Agora faço a paz. Só a
paz.
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