PROFESSORA DE PORTUGUÊS
Quando
eu entrei na escola meu mundo se dividiu. Antes eu tinha o tempo todo para mim:
brincava, corria, nadava no igarapé, subia nas árvores, ia para a roça
acompanhar minha mãe, ouvia histórias dos avós, cuidava de minha cutia de
estimação. Enfim, o dia não acabava nunca!
Quando
minha mãe inventou de me colocar na tal escola da cidade para que eu crescesse
sabendo mais coisas que ela, o tempo tomou outra dimensão. Na verdade não foi
minha mãe que insistiu com a escola, soube disso depois, mas o governo havia
criado uma lei que dizia que todas as crianças – inclusive as que moravam nas
aldeias – deviam ser matriculadas e frequentar a escola. Era uma condição que
não cabia nem questionar naquele tempo.
Acostumado
a andar pelado pela aldeia, me agoniou usar uma farda e um sapato apertados. Era
o início de uma prisão que meu corpo iria ter que se adaptar. Não adiantou
reclamar, bater o pé, me esconder na floresta ou fazer birra. A decisão de ir
para a escola estava tomada e a escolha não era minha. O tempo que era todo
meu, agora eu tinha que dividir com colegas estranhos, com adultos mais
estranhos ainda, com deveres de casa ou com aprendizados que não me diziam
nada. Se no começo foi bom, confesso, depois foi ficando um tédio especialmente
por conta dos apelidos e gozações que sofria dos colegas.
Por
causa do português muito ruim que eu falava, as aulas eram terríveis. Quase não
entendia nada. Matemática, ciências, história ou geografia eram gregos. No
entanto, sempre procurava me esforçar o máximo porque eu sabia que se não o
fizesse receberia castigos que eram, às vezes, físicos e, outras, uma penca de
exercícios para fazer em casa. As lições de casa roubavam meu tempo de brincar
e me divertir.
Haviam,
porém, duas coisas que eu gostava na escola e que, para mim, nada tinham a ver
com a obrigação de estudar: as aulas de educação física e a professora de
português. A primeira vocês podem entender porquê, né? Eram nas aulas de
educação física que eu me vingava dos meus colegas. Eles eram todos muito
fracos, lentos, preguiçosos e eu o mais rápido, mais preparado e forte. As
corridas pela mata, as subidas constantes nos pés de açaizeiro, as braçadas no
igarapé e o café da manhã que minha mãe preparava me davam energia de sobra e
me faziam ser mais desenvolvido que os frangotes da cidade. Eu procurava
mostrar todo meu vigor nessas horas e meus colegas tinham mesmo que admirar o
“bicho do mato”, como diziam.
A
outra coisa era a professora Fátima. Ela lecionava português. Por causa dela eu
até me perfumava com o cheiro de patchulli extraído da mata. Quando tinha aula
com ela – e tinha quase todos os dias – eu me produzia todinho. Fazia minha mãe
lavar minha farda pra ficar bem branquinha; lavava meu tênis conga azul celeste
para ele ficar da mesma cor dos olhos dela; caprichava na lição de casa para
que ela se orgulhasse de mim; e levava uma tira de ingá como presente para ela.
Professora
Fátima era loira, branca, olhos azuis, jovem e tinha os dentes pra frente. Seu
sorriso solto destacava sua arcada dentária e a deixava ainda mais bonita.
Nunca tinha visto ninguém com cabelos daquela cor. Minha cutia de estimação era
ruiva; as onças tinham tiras na pele; as araras eram de variadas cores, mas a
professora Fatima era uma ave rara que eu gostava de contemplar.
Um
dia ela olhou para mim com seus olhos cor de céu. Ela disse que eu era bonito,
simpático, alegre e que ela gostava muito de mim especialmente porque eu me
esforçava para aprender bem a língua portuguesa. Esse foi o dia mais feliz de
minha vida até aquele momento. Alguém finalmente tinha dito alguma coisa que me
servia de elogio. E esse alguém tinha sido exatamente ela, minha professora de
português por quem eu nutria uma paixão secreta e indestrutível. Meu coração deu
pulos de felicidades e meu espírito finalmente faziam as pazes com os homens
brancos. Ou melhor, com as mulheres brancas. Daquele dia em diante meu esforço
ficou muito maior para satisfazer minha professora de português.
Tempos depois haveria uma festa
junina, dessas que acontecem em escolas durante o ano. Haveria dança de
quadrilha e eu já havia escolhido meu par: professora Fátima, minha deusa.
Seria a glória para mim. Preparei-me para fazer o convite uns dias antes quando
tudo já estaria preparado. Fui à sala dos professores nutrido de coragem e
determinação. Bati à porta para ser atendido. Lá de dentro saiu minha
professora acompanhada de um homem. Ela olhou para mim, apresentou seu namorado
e perguntou o que eu queria ali. Nada, eu disse.
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