CORTA ESSA DE SUICÍDIO!
José Ribamar Bessa Freire
28/10/2012 - Diário do Amazonas
Foi
assim. No primeiro século da era cristã, os Guarani saíram da região
amazônica, onde viviam, e caminharam em direção ao Cone Sul. Depois de
longas andanças, ocuparam terras que hoje estão dentro de vários estados
nacionais: Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. Os vestígios
arqueológicos e linguísticos que foram deixando ao longo do caminho
permitiram que os pesquisadores reconstruíssem essa rota e
estabelecessem datas prováveis do percurso feito.
Dois
mil anos depois, um italiano, nascido em 1948, em Toscana, atravessou o
oceano Atlântico com sua família, veio para Porto Alegre, de lá para
Curitiba, se naturalizou brasileiro e se instalou, finalmente, em Mato
Grosso do Sul, onde encontrou os Guarani, que lá vivem há quase dois
milênios. O italiano recém-chegado se tornou governador do Estado. Seu
nome: André Puccinelli (PMDB - vixe, vixe).
A
migração estrangeira ajudou a construir nosso país, quando conviveu em
paz com os que aqui estavam há muitos séculos, sem atropelá-los. Muitos
estrangeiros, honrados, trouxeram trabalho, riqueza e cultura e
compartilharam o que tinham e o que produziam com o resto da sociedade
que os acolheu. Ensinaram a aprenderam. Mudaram e foram mudados.
Benditos estrangeiros que plasmaram a alma brasileira!
No
entanto, não foi isso o que sempre aconteceu em Mato Grosso do Sul. Lá,
desde 1915, fazendeiros, pecuaristas e agronegociantes, quando
chegaram, encontraram as terras ocupadas por índios. Consideraram as
terras indígenas como "devolutas" e começaram a expulsar os que ali
viviam, num processo que se acelerou nas últimas décadas. Foi aí que os
invasores, representados hoje, no campo político, por André Puccinelli,
colocaram seus documentos pra fora e, machistas, ordenaram
autoritariamente:
- Deite que eu vou lhe usar!
Usaram
a terra em proveito próprio, da mesma forma que o coronel Jesuíno,
interpretado por José Wilker, usou a Sinhazinha na minissérie Gabriela:
sem nenhum agrado, sem qualquer respeito. Com dose cavalar de
brutalidade, desmataram, queimaram, exploraram os recursos naturais,
abusaram dos agrotóxicos, colheram safras bilionárias de soja, cana e
celulose, extraíram minério, poluíram rios e privatizaram a natureza
para fins turísticos. Pensaram só neles, no lucro, e não na terra e na
qualidade da vida, nem compartilharam com a sociedade, que ficou mais
empobrecida.
Flor da terra
O resultado desastroso do uso da terra foi lamentado pelos líderes e professores Kaiowá em carta de 17 de março de 2007:
- O
fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do
fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O
lixo sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora
de nossas terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como
socorrer a Vida.
Para
os Guarani, o que aconteceu foi um estupro, ferindo de morte a
sinhazinha natureza. A relação deles com a terra é amorosa, eles não se
consideram donos da terra, mas parceiros dela. Ela é o tekoha, o lugar onde cultivam o modo de ser guarani, o nhanderekó. "Guardamos com a terra" - diz o kaiowá Tonico Benites - "um forte sentimento religioso de pertencimento ao território".
O
professor guarani Marcos Moreira, quando foi meu aluno no curso de
formação de professores, entrevistou o velho Alexandre Acosta, da aldeia
de Cantagalo (RS) que, entre outras coisas, falou:
- Esta
terra que pisamos é um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem
veias, tem sangue. É por isso que o Guarani respeita a terra, que é
também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois o rio é o sangue de
um Karai. Esta terra tem vida, só que muita gente não percebe. É uma
pessoa, tem alma. Quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma
árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de um
ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós.
Os
líderes Kaiowá reforçam essa relação com a terra quando lembram, na
carta citada, que o criador do mundo criou o povo Guarani para ter
alguém que admirasse toda o esplendor da natureza."O nosso povo foi
destinado em sua origem como humanidade a viver, usufruir e cuidar deste
lugar, de modo recíproco e mútuo" - escreve o kaiowá Tonico Benites,
doutorando em antropologia. "Por isso, nós somos a flor da terra, como
falamos em nossa língua: Yvy Poty" - completam os líderes Kaiowá.
Se
a terra é um parente, a relação com ela deve ser de troca equilibrada,
de solidariedade. É como a mãe que dá o leite para o filho. Ela dá, sem
pensar em cobrar. Ela não cobra nada, mas socialmente espera que um dia,
se precisar, o filho vai retribuir.
"Tudo
isso é frescura" - dizem os fazendeiros e pecuaristas que pensam como o
coronel Jesuíno: a terra é pra ser usada. E ponto final. Portanto, o
conflito não é apenas fundiário, mas cultural, com proporções tão graves
que a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, considera
essa como "a maior tragédia conhecida na história indígena em todo o
mundo". É que os Guarani decidiram defender a terra ferida e para isso
realizaram um movimento de ocupação pacífica do território tradicional
localizado à margem de cinco rios: Brilhantes, Dourados, Apa, Iguatemi e
Hovy.
Apenas
uma pequena parte do antigo território, que lhes permita sobreviver
dignamente, é reivindicada. É o caso da comunidade Pyelito Kue-Mbarakay,
no extremo sul do Estado, onde vivem 170 Kaiowá, dentro da fazenda
Cambará, às margens do rio Hovy, município de Iguatemi (MS). A
comunidade está cercado por pistoleiros e lá já ocorreram recentemente 4
mortes, duas por espancamento e tortura dos jagunços e duas por
suicídio.
Somos Kaiowá
Um
juiz federal, Sergio Henrique Bonacheia, determinou, em setembro
último, a expulsão dos índios. Ele afirmou que não interessa "se as
terras em litígio são ou foram tradicionalmente ocupadas pelos índios ou
se o título dominial do autor é ou foi formado de maneira ilegítima".
Os índios vão ter que sair - decidiu o magistrado.
O
Ministério Público Federal e a Funai recorreram ao Tribunal Regional
Federal contra tal decisão. Os índios se rebelaram, escreveram uma carta
anunciando que dessa forma o juiz está decretando a morte coletiva, que
ele pode enviar os tratores para cavar um grande buraco e enterrar os
corpos de todos eles: 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças, que eles
ali ficam, como um ato de resistência, para morrer na terra onde estão
enterrados seus avós.
O
suicídio coletivo - assim a carta foi interpretada - teve enorme
difusão nas redes sociais e ampla repercussão internacional, "com o
silêncio aterrador" da mídia nacional, como lembrou Bob Fernandes, autor
de um dos três artigos esclarecedores e informativos. Os outros dois
foram de Eliane Brum e de Tonico Benites.
Construiu-se
rapidamente nas redes sociais uma corrente de solidariedade, com
sugestões para a realização de atos de protestos em muitas cidades
brasileiras. "Nós todos somos Kaiowá" - disseram, parodiando um slogan
que ficou célebre em maio de 1968, na França: "Nous sommes tous des juifs allemands". Um
desses atos, marcado para hoje, domingo, dia 28, será no Centro
Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro, onde está instalada uma
exposição sobre a vida da atriz Regina Duarte, proprietária de uma
fazenda em MS e considerada porta-voz dos fazendeiros, por uma
declaração infeliz que deu.
Diante
da gravidade dos fatos, o governo federal convocou reunião de
emergência para a próxima segunda-feira, com a participação de vários
órgãos governamentais. A possibilidade de se efetivar o suicídio
coletivo dos Kayowá se apoia em dados oficiais do Ministério da Saúde:
nos últimos onze anos, entre 2.000 e 2011, ocorreram 555 suicídios, uma
das taxas mais altas do mundo.
Se
a tragédia acontecer, uma pergunta vai ter que ser respondida: suicídio
coletivo? Será mesmo? A ideia de suicídio é, num certo sentido muito
cômoda, porque isenta de culpa a terceiros. Mas se você é levado por
alguém a se matar, trata-se de suicídio ou de uma forma de homicídio? O
artigo 122 do Código Penal Brasileiro estabelece pena de reclusão para o
agente que, através de ato, induz ou instiga alguém a se suicidar ou
presta-lhe auxílio para que o faça. Quem pode ser incriminado neste
caso?
A
pergunta deve ser feita ao governador Puccinelli, implicado pela
Operação Uragano da Polícia Federal num esquema ilegal de pagamento de
propinas a deputados e desembargadores, que em maio de 2010, durante a
abertura da Expoagro, em Dourados, incitou os fazendeiros contra os
índios. A pergunta pode ser repassada também à senadora Kátia Abreu,
presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, que em
artigo, ontem, na Folha de São Paulo, teve o descaro de escrever, com
certa dose de cinismo e de deboche:
-
"Se a Funai pensa, por exemplo, que são necessárias mais terras para os
indígenas pela ocorrência da explosão demográfica em certa região, nada
mais fácil do que comprar terras e distribuí-las".
O
discurso da senadora - convenhamos - é transparente, porque evidencia a
relação exclusivamente mercantil que têm com a terra, ela e aqueles que
ela representa e da qual é porta-voz. Mostra ainda que ela não é capaz
de entender a relação amorosa e religiosa dos Guarani com a terra. O
coronel Jesuíno, certamente, assinaria embaixo de tal discurso.
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004
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