Sobre a morte e o morrer

(A propósito do dia 02 de novembro)

Meu povo munduruku vê a morte como um processo natural e necessário. Em seu mito de origem conta que nossos ancestrais viviam no mundo do centro da terra onde só havia fartura e bonança e os caçadores não precisavam se esforçar muito para conseguir os alimentos para o dia-a-dia.
Havia um caçador, no entanto, que era muito esforçado e andando a esmo notou que havia um tatu maior do que o normal e passou a persegui-lo. O animal ao se ver perseguido fugiu cavando um buraco na abóboda celeste. O caçador foi atrás e entrando pelo buraco deparou-se com um mundo bem diferente do que estava acostumado. Ficou assustado e voltou para junto dos seus a fim de contar-lhes o que havia descoberto. Todos o ouviram com atenção e decidiram ir conhecer o mundo de cima. Teceram, então, uma rede bastante comprida e um exímio arqueiro lançou uma certeira flechada que fincou numa árvore.
Todos passaram a subir pela corda com cuidado. E muitos já haviam partido, mas quando os mais fortes, belos e competentes também iriam subir um abalo de terra fez a corda romper-se deixando-os para trás. Os que haviam subido estavam tão fascinados com o novo mundo que nem se deram conta que o abalo havia fechado a entrada e que eles não poderiam mais retornar. Quando perceberam isso já era tarde demais, pois haviam caminhado por algum tempo e já não sabiam mais o caminho de volta. Ficaram procurando, mas desistiram e resolveram organizar sua vida por ali mesmo.
Para nossos velhos, nosso povo ainda continua a procurar a entrada daquele lugar paradisíaco. No mundo de cima tinham que trabalhar para poder sobreviver. Então criaram os cantos para que jamais esquecessem de onde vieram e inventaram rituais para poderem se sentir participantes daquele mundo. E foi aí que a morte foi inventada, pois as pessoas passaram a envelhecer por causa de seu desejo de retornar ao mundo subterrâneo. Assim, para nosso povo, morrer é o momento de encontrar-nos com os ancestrais imortais que vivem na nascente do rio Tapajós.
Acontece que para sermos merecedores de conviver com nossos avós ancestrais temos que procurar viver nossa existência com dignidade, comunitariamente, com respeito a todas as formas de vida que compartilham conosco o mistério da existência.
Quando alguém morria nos tempos antigos era enterrado dentro de casa. Era colocado numa cova e com ele eram colocados objetos que precisaria na sua viagem para o mundo ancestral. Essa “viagem” dura trinta dias no tempo dos vivos. Durante esse período os familiares mais próximos choram a memória do morto. É um choro ritual. Choram porque acredita-se que o choro ajudará o parente a fazer uma boa viagem. E enquanto as pessoas choram, vão lembrando passagens da vida do falecido (especialmente se for um velho). Depois de passado os dias do luto ritual os parentes se reúnem para fazer uma comemoração pela boa viagem e para “esquecer” o falecido. Todos sabem que ele está no mundo dos ancestrais. Será mais um a olhar por eles e não precisa ser lembrado nunca mais.
Tem outro detalhe oriundo dessa compreensão da morte: nossa gente não tem culto aos mortos, não tem cemitério. Cada lugar é considerado sagrado porque os mortos estão enterrados em diferentes lugares transformando todo o território num grande campo santo.
Morrer é, portanto, uma forma de unir-se à natureza e devolver o corpo que tão gentilmente ela cuidou. É também a certeza de estar voltando para o convívio com os avós ancestrais que nos esperam no mundo de baixo.

Comentários

  1. Oi Daniel,
    Nós gostamos muito da sua visita na nossa escola, o Gracinha. Aprendemos muito sobre os índios e adoramos a forma como você contou.
    Xipat Oboré!
    4ºano A

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  2. Bom dia Daniel,
    sou uma estudante do Curso de Tradução da Universidade de Trieste, na Itália. Mandei um e-mail para o seu endereço que encontrei na sua homepage, mas não sei se ainda está utilizando aquele endereço. Queria contatá-la porque estou preparando uma tese para eu obter a Graduação de Tradutora. Estou muito interessada na cultura brasileira, nomeadamente na cultura indígena. De facto, eu já tinha apresentado outra tese para o primeiro nível de Graduação sobre o Tupi Antigo: tratava-se de uma gramática descritiva.
    Desta vez, eu decidi traduzir para o italiano um dos seus livros de que gostei muito: « Contos indígenas brasileiros ». Se estiver de acordo, teria algumas perguntas - e pode ser que vou ter outras durante o desenvolvimento da tese. Sobretudo queria saber se já existem traduções dos seus livros para o italiano, alemão, francês, espanhol ou inglês.
    Vou lhe deixar meu contato aqui: daniela.rughetti@yahoo.it
    Agradeço-lhe desde já e espero que terá tempo para responder às minhas perguntas.
    Muito obrigada,
    Daniela

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